Museu Britânico: uma viagem pelo mundo

Desde pequena, eu tinha um fascínio por aqueles livros infantis cujo personagem viajava no tempo para a terra dos faraós, dos dinossauros, dos índios em terras desconhecidas. Minha imaginação infantil era capaz de pular séculos na história no folhear de poucas paginas, visitando o Olimpo antigo aos indígenas do Velho Oeste Americano, e voltar a tempo para o lanche da tarde. E talvez seja essa mesma paixão por contar histórias e por viajar no tempo que me trouxe para a carreira que eu hoje escolhi, ser guia de turismo certificada Blue Badge. Um trabalho que eu adoro e que não vejo a hora de retomar, assim que a vacina permita que viagens e passeios voltem a ser seguros.

Clarissa Donda guiando no Museu Britânico. Foto: Clarissa

Sou uma apaixonada por Londres e pela Inglaterra. Mas ouso dizer que, de todos os museus, o meu preferido é o Museu Britânico – nenhum outro me faz sentir de volta à minha pequena máquina do tempo que era a minha pequena biblioteca. 

O tamanho do museu explica, em parte, esse amor todo: são mais de 8 milhões de objetos de acervo, sendo que apenas 50 mil está em exibição pelos corredores e prateleiras. Ou seja, a gente só vê mesmo é um 1%, uma pontinha do iceberg de curiosidades do mundo que vem de diferentes parte, do Egito Antigo à Grécia, da África e Américas. Lembro, durante o meu curso de treinamento como guia, de ir ao Museu quase todos os dias, por seis meses. Já me formei, o tempo passou, e a sensação de ser uma exploradora e ver as coisas pela primeira vez nunca acabou.

Clarissa é especializada em tours infantis. Foto: Clarissa

Vou, então, dividir com você duas das minhas peças preferidas do museu, e porquê que elas me dão tanto gosto. Já adianto – são objetos calados, inertes, mas que gritam histórias escondidas, de civilizações e tempos que não existem mais. Eu sinto, como guia, que é meu dever ouvir essas histórias e traduzí-las ao mundo, hoje, e é o que tento fazer nos meus tours. Amo ver as pessoas – especialmente as crianças! – partilharem dessa descoberta!

 

 

A Serpente de duas cabeças – México

Essa serpente é tão impactante ao olhar que volta e meia ela é usada como uma das “garotas propagandas” do museu, ilustrando banners promocionais. Pudera: poucos objetos falam tanto de mistério, poder e, de certa forma, mágica. 

Double Headed Serpent Aztec At British Museum, licensed under CC BY 2.0

A serpente foi produzida pela extinta civilização Asteca, um império poderoso que se estendeu de onde é o Texas hoje até a Guatemala. Era um império jovem: cresceu em meados de 1400s, e de certa forma sua operação tinha semelhanças com o Império Romano: cresceu de forma militarizada, com a cobrança de tributos como principal forma de poder econômico. 

Mas nessa história, ao invés de Cézar, temos o Rei Montezuma. Ao invés de Roma, temos Tenochtitlán (hoje a Cidade do México). E ao invés de ouro, temos turquesas. Milhares delas, coletadas das diferentes partes do Império Asteca e enviadas como tributos para a capital. Essa serpente, por essa ótica, não parece só assustadora por estar de dentes à mostra: ela é feita, literalmente, do imposto extraído (às vezes à força) de todo um império. 

E assim como na Roma Antiga, muito do cotidiano do povo Asteca tinha significados religiosos. A Serpente de Duas cabeças, provavelmente usada como objeto de cerimônias pelo próprio Montezuma, simboliza uma animal-deus, o Quetzalcoatl, que literalmente significa “serpente emplumada” – céu e terra num símbolo só.

Os espanhóis chegaram em 1519 e, dois anos depois, pouquíssimo restaria do império Asteca. Há relatos que dizem que 90% dos Astecas morreram, muitos vítimas de doenças desconhecidas trazidas pelos invasores. E com eles, muitos desses belíssimos mosaicos em turquesa – acredita-se que há apenas 25 sobreviventes no mundo.

Com o desaparecimento dos Astecas, o mundo herdou uma enorme pilha de perguntas eternamente sem resposta sobre a cultura de uma civilização extremamente avançada e fascinante. Então, ao olhar nos olhos ocos dessa serpente que nos encara com suas duas cabeças com a boca aberta podemos imaginar que ela é o único canal que sobrou para contar histórias de um povo que não existe mais.

Talvez seja esse o seu maior mistério.

 

A Árvore da Vida

Este é um projeto mais recente e, ao contrário das peças acima, desenvolvido especialmente para o Museu Britânico – e de quebra, tem um pouco de calor da Língua Portuguesa.

“L’Arbre de vie (British Museum)” by dalbera is licensed under CC BY 2.0

À primeira vista, é uma árvore de metal, cercada pela fauna local e viva de Moçambique. Mas basta aguçar o olhar para além da árvore e da poesia do nome para ver que ela é totalmente feita de pedaços de armas: rifles, baionetas, revolveres.

Para entender é preciso voltar um pouco no tempo, para o período quando Moçambique conseguiu a independência de Portugal para mergulhar em seguida em anos de uma sangrenta guerra civil. Nesse período, milhares de armas foram despejadas no país, muitas sendo escondidas em florestas, arbustos, no chão. A guerra só acabaria em 1992, mas a realidade de tantas armas ainda em circulação pelo país deixava os esforços de paz ainda muito frágeis. Então alguns projetos foram criados pelo país para tentar transformar esse problema: iniciativas para transformar fuzis em enxadas, pás, ferramentas. Objetos de destruição sendo transformados para construir. 

O projeto se chamaria, literalmente, “Transforming Arms into Tools” (Transformando Armas em Ferramentas), onde os moçambicanos foram encorajados a entregar as armas que encontravam em troca de utensílios. E os artistas de Maputo de repente se viram com muita material para criar esculturas de ferro curiosas, inventivas e, sobretudo inspiradoras. Pura paz.

Eu acho poética essa escultura. Acho viva, delicada, alegre – talvez o melhor exemplo de arte transformadora de objetos e de mentalidades. Amo, ainda, o fato de que as crianças em especial se encantam pela escultura e pelos bichinhos, sem sequer imaginar que a finalidade inicial da matéria prima daquela arte trazia exatamente o oposto da vida que pela sugere. 

Se um museu, lugar que se dedica a contar histórias do passado, pudesse também contar histórias de um futuro que gostaríamos, eu penso que seria essa Árvore da Vida o que eu gostaria de ver mais e mais, em todo lugar. 

 

Sobre a Autora:

Clarissa Donda é jornalista e Guia Blue Badge de Londres, responsável pelo Dondeando por Londres. Uma apaixonada pela Inglaterra e excelente contadora de histórias, ela é conhecida sobretudo pelos tours infantis que oferece, sua especialidade. Seus tours mais vendidos são o Mercado Financeiro para crianças e o tour pelo Mundo, realizado dentro do museu. Você pode encontrar todos os tours que ela organiza aqui, ou falar com ela diretamente pelo IG @DondandoporLondres